José Pedro da Silva Neto
Ao longo do tráfico de seres humanos escravizados da África, entre os séculos XVI a XIX, chegaram vivos às Américas aproximadamente 11 milhões de africanas e africanos, originários de diversas regiões do Continente africano, na condição de escravizados. Somente para o Brasil foram trazidos cerca de 5 milhões (Alencastro,2000), ou seja 44% do total, o que explica a diversidade de idiomas e tradições preservadas nos territórios tradicionais de matriz africana construídos no país.
Inegável são as várias misturas e intercessões ocorridas no decorrer dos anos entre os vários povos africanos. É justamente esse movimento de ruptura e negociação de novos elementos devido às exigências, seja de novas temporalidades, seja de espaços diferentes, seja por novos marcos legais, seja por outros intelectuais, que constitui o objeto deste marco conceitual.
No entanto, o olhar as rupturas e a consequente negociação de novos elementos seria parcial, e não possibilitaria a apreensão da dinamicidade que esse movimento requer, se não fossem captadas as permanências. É no jogo entre as rupturas e as continuidades que este marco conceitual tende a trilhar.
Neste sentido, não há a pretensão de alterar a imagem de matrizes africanas que os povos tradicionais usam no Brasil e sentem-se representadas no seu cotidiano, muito menos de negar sua religiosidade, ao contrário, objetivamos apor as práticas ritualísticas como um dos diversos prismas, mas não o único.
São também as mudanças, mas especialmente as permanências, de marcos civilizatórios presentes no dia a dia dos povos tradicionais de matrizes africanas no Brasil que este conceito se estabelece criando um paradigma para a superação e combate ao racismo e para construção de políticas públicas voltadas aos povos e comunidades tradicionais de matriz africana.
Muniz Sodré afirma que povo é um conceito político, o que nos dá a dimensão de uma definição que é ampla. Ainda que “em movimento” a definição de povo nos permite identificar conjuntos de sujeitos, individuais e coletivos, em uma perspectiva que envolve a história, a cultura e ações políticas desse agrupamento humano, na sua afirmação e expressão da vida em contextos diferentes. Trata-se de uma concepção histórica e cultural, portanto, carregada dos sentidos étnicos e geográficos, mas que transcendem a esses pela sua característica eminentemente política, aberta, ativa, enfim dinâmica.
A inferência inicial é necessária, pois nas concepções moderno-ocidentais o conceito de “política”, ou a qualidade do que é político, geralmente é de significado incompleto e, invariavelmente, “povo”, passa a ser pensado a partir do “demos” grego, das concepções jurídicas do cabedal teórico greco-romano que sustenta o pensamento predominante no ocidente.
Não se pretende aqui o uso do significado de povo que, por injunção, aproxima-se daquele que fundamenta os sentidos modernos de nação, Estado, sociedade, comunidade, que se dissolve em abstrações como “cultura brasileira”, “nação brasileira” e “povo brasileiro”, comumente usadas com o propósito de negar identidades, descaracterizar e sufocar a diversidade e que servem também de álibi para a não implementação de políticas públicas que contemplem e fortaleçam as identidades na sociedade.
Lembra ainda Sodré que os Estados Nação tentam, insistentemente, renovar o uso dessas expressões, mas enfrentam em todos os momentos históricos, grandes dificuldades na sua objetivação, dado o caráter móvel e dinâmico dos povos que constituem um Estado e as diversidades próprias daquilo que se entende, no ocidente, por Nação.
O conceito aqui posto, baseia-se na histórica luta de movimentos e lideranças tradicionais de matriz africana, subsidiado a partir de discussões feitas entre a sociedade civil ao longo de décadas, mais intensivamente entre os anos de 2011 e 2014. Chega-se então, não sem conflitos teóricos, mas com uma base concreta e um respaldo histórico, aos elementos que aqui estão resumidos na denominação “Povos Tradicionais de Matriz Africana”.
O texto produzido coletivamente por um grupo de lideranças, apresentado por Makota Zimeuanga Valdina Pinto durante a Plenária de Matriz Africana em 2013 preparatória para a III CONAPIR diz:
Assim sendo, no processo de elaboração do primeiro Plano de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, no diálogo que mantivemos com o Governo e outras lideranças de Matriz Africana, desde dezembro de 2011, algumas expressões e conceitos foram se materializando e estão presentes no documento, segue algumas: Povos Tradicionais de Matriz Africana referindo ao conjunto dos povos africanos para cá transladados e às suas diversas variações e denominações originárias dos processos históricos diferenciados em cada parte do país, na relação com o meio ambiente e com os povos locais; […] . (Makota Valdina Pinto, 2011 apud SILVA NETO, 2023)
O diálogo sobre as políticas públicas para os Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, remete ao decreto no. 6040/2007, que estabelece a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável para Povos e Comunidades Tradicionais, cujas definições e objetivos respondem às demandas e pautas colocadas para o governo pelas lideranças tradicionais de matriz africana.
O artigo 3º, inciso I, do referido Decreto define como Povos e Comunidades Tradicionais os:
grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam território e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
Na sociedade brasileira contemporânea vivemos processos de mudanças na concepção de povo, dando a esta dinamismo e pluralidade, mas que, entretanto, não se desvencilha de uma concepção teológica referenciada, o que reflete o processo de colonização e dominação da Europa. Além da dominação econômica e política, o imperialismo europeu transmitiu ao Brasil seu legado ideológico, a supervalorização da pessoa branca, da cultura do branco europeu e a marginalização e discriminação do negro e indígena.
Não se pretende impor às lideranças tradicionais de matriz africana uma nomenclatura restritiva e muito menos ignorar a sua relação com o “sagrado”. Muito pelo contrário, a proposta é superar o reducionismo a que foram relegadas as tradições africanas ao longo da história no Brasil, resumidas à sua religiosidade. O objetivo é o de desvelar para o Estado e para a sociedade a sua real dimensão, os marcos e bases “civilizatórias” que compõem seu léxico, sem prejuízo das auto-identificações.
Em todo o território tradicional, os chamados “terreiros”, “roças”, “ilês”, “nzo”, “abacá” ou “egbe” [expressões que referem ao território, espaço de articulação, preservação e transformação dos valores sociais organizativos], entre outras denominações utilizadas quando se refere à auto-identificação das comunidades tradicionais oriundas de diferentes contextos culturais africanos presentes no Brasil, se organizam com base em valores sociais próprios, na vivência comunitária, relação sustentável com o meio ambiente, práticas tradicionais alimentares e de saúde, que reafirmam a dimensão histórica, social e cultural dos territórios negros constituídos no Brasil, nos quais as práticas rituais, a religiosidade, a relação com o sagrado, constitui apenas uma de suas facetas.
Práticas Rituais / Relação com o Sagrado |
Ancestralidade |
Senioridade |
Circularidade |
Cosmogonia |
Mulher Negra |
Alacridade |
Comunidade |
Identidade |
Oralidade |
Território |
Tradição |
Origem |
Terra |
Povo |
É o racismo, independente das adjetivações que possa receber, enquanto fato social total o principal elemento que impede os povos tradicionais de matriz africana e tudo constituído por seus integrantes terem soberania e seus direitos plenamente garantidos.
O conceito e seus usos buscam anular o “reducionismo das práticas tradicionais de matriz africana apenas a “religião”, pois isso nega a real dimensão histórica e cultural dos territórios negros constituídos no Brasil, e, ainda nos coloca diante de uma armadilha, a do Estado Laico, que na prática ainda está longe de ser real, mas o É quando está em “risco” a hegemonia cultural eurocêntrica no país. Ademais, concordamos plenamente que o Estado deve ser laico, para toda e qualquer manifestação religiosa, garantindo sua liberdade de existir, mas não promovendo-a. Entretanto, é dever do Estado promover e valorizar as diversas tradições que constituem o país.
Afinal, nossas estratégias são fundadas no exercício cotidiano a partir de conhecimentos, práticas e tecnologias – negras – com origem e destino, hoje!
Bibliografia
BRASIL. (2007). Decreto nº 6.040, de 07 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. DOU de 08/02/2007.
Link: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm
BRASIL. (2013). Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Secretaria de Políticas para Comunidades Tradicionais. Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana. Brasília: SEPPIR/PR-SECOMT, 2013.
Link: https://bibliotecadigital.economia.gov.br/handle/123456789/259
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Link: https://www.gov.br/cultura/pt-br/assuntos/plano-nacional-de-cultura/texto/planos-setoriais
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Link: https://pt.scribd.com/document/420878529/BRASIL-SEPPIR-Cadernos-de-Debates-Povos-e-comunidades-tradicionais-de-Matriz-Africana-pdf
SILVA NETO, José Pedro da. (2023). Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana: Notas de uma categoria em construção entre 2010 e 2016. In SILVA, Vagner Gonçalves da. AMORIM, Cleyde Rodrigues. Doma: saberes negros e enfrentamento ao Racismo. Rio de Janeiro: Editora Telha, 2023.
Link: https://www.livrosabertos.abcd.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/1123
SILVA NETO, José Pedro da. MORAES, Arthur Leandro. OLIVEIRA. Paulo Cesar Pereira de. (2019). Interfaces da cultura negra e os povos tradicionais de matriz africana in SILVA, Vagner Gonçalves da. OLIVEIRA, Rosenilton Silva. SILVA NETO, José Pedro da. Alaiandê Xirê: desafios da cultura religiosa afro-americana no Século XXI. São Paulo: Faculdade de Educação da USP, 2019. pp. 185-197.
Link: https://www.livrosabertos.abcd.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/435
SILVA NETO. José Pedro da. (2019). Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana: visgo para combater o visgo para combater o racismo. In Centro Sérgio Buarque de Holanda. No. 12, ano 13, maio 2019. p. 91-120.
Link: https://revistaperseu.fpabramo.org.br/index.php/revista-perseu/article/view/300/247